quarta-feira, novembro 01, 2006

Hélio Schwartsman

28/09/2006
Dilema democrático
Comento hoje com um salutar atraso o escândalo do dossiê. Meus piores temores se materializaram. Por não termos sido intransigentes com a ética lá atrás, metemo-nos agora numa bela enrascada. Em princípio, há elementos de sobra para instaurar processos eleitoral e por crime de responsabilidade contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas, ao que tudo indica, dentro de três dias ele será mais uma vez sagrado primeiro mandatário com mais de 60 milhões de votos. Qualquer ação para impedi-lo de exercer um segundo governo terá acintoso caráter antipopular e poderá ser interpretada como um golpe contra a democracia. De modo análogo, fingir que nada ocorreu e que regras fundamentais do jogo republicano não foram quebradas por Lula ou pelo grupo que o cerca também conspira contra o caráter democrático das instituições.

Sinceramente, já nem sei qual atitude seria a menos pior agora. No mundo do dever-ser, a solução se afigura mais fácil. Assim como Fernando Collor de Mello foi legalmente afastado em 1992, deveríamos ter instaurado um processo semelhante contra Fernando Henrique Cardoso em 1997, quando surgiram evidências insofismáveis de que parlamentares foram subornados para votar a emenda constitucional que permitiu a reeleição de presidente, governadores e prefeitos. E a mesma trilha deveria ter sido percorrida no ano passado, assim que ficou patente que a atual administração mantinha um esquema quase institucionalizado de compra de deputados. Só que nada disso aconteceu e provavelmente nada ocorrerá.

É claro que o impeachment é um processo traumático e não isento de riscos. Mas os prejuízos de nossa leniência são incomensuravelmente maiores. Entre mensalões e sanguessugas, estamos com algo como 15% de nossos deputados envolvidos com graves falcatruas --sem mencionar que a maior parte da primeira leva de "julgados" em plenário foi absolvida. Mais do que isso, toleramos um governo que confunde Estado com partido e não cessa de aprontar crimes que, embora não firam de morte, maculam consideravelmente nossa jovem democracia.

O que me assusta no PT já não é o total oblívio do discurso ético que até pouco tempo atrás o diferenciava dos demais partidos --e no qual eu e tantos outros inadvertidamente acreditamos--, mas a incompetência com que se lança em operações fraudulentas e canalhas. Acho que foi o próprio Lula quem disse que o setor de inteligência (sic) da campanha petista havia colocado em risco uma eleição garantida (a dele) para tentar ganhar uma perdida (a de Aloizio Mercadante ao governo de São Paulo). Se tamanha incapacidade se reproduz nas esferas administrativas, o país está perdendo rios de dinheiro com erros operacionais.

Escolado pelos últimos acontecimentos, não duvido de que tucanos de alta plumagem tenham participado de esquemas corruptos, como sugere o noticiário sobre o dossiê. O caso Azeredo está aí para provar que o PT não inventou nada nessa matéria. Vou até um pouco mais longe e admito que não há crime nem --vá lá-- problema moral em pagar alguém para dizer a verdade. Ainda assim resta a questão da origem dos quase R$ 2 milhões que seriam utilizados para adquirir o pacote dossiê-entrevista. A relutância das autoridades em revelar de onde vem o dinheiro sugere a um só tempo que a Polícia Federal é menos republicana do que se apregoa e que o PT, por seguir empregando os famosos recursos não-contabilizados, não é nem mesmo capaz de aprender com seus próprios erros. De qualquer forma, concordo com a avaliação de que a imprensa deu menos espaço do que deveria à apuração das verdades antitucanas que o papelório possa conter.

Sei que alguns vão me criticar por ter afirmado que deveríamos ter deposto três de nossos últimos quatro presidentes. O impeachment, muitos afirmam, é algo para ser usado uma vez a cada século. Não sei de onde tiraram esse mantra, mas discordo. A sanção política prevista para o crime de responsabilidade do presidente da República deve ser aplicada tantas vezes quantas se faça necessário. Se três de nossos quatro últimos mandatários pisaram na bola, a culpa é deles. Se Collor, FHC e Lula prevaricaram, por ação, omissão ou uma mistura de ambos, não deveriam existir razões para que não fossem afastados. No mundo real, entretanto, o impeachment só se materializa se o governo estiver muito mal avaliado pela população, o que modernamente tem ocorrido muito mais por conta do desempenho da economia global do que por causa de políticas ou decisões da administração.

Uma possível solução para esse problema seria a substituição do presidencialismo pelo parlamentarismo. Umas das principais vantagens deste último é que ele responde bem a situações de crise, pois a troca de gabinete pode ocorrer a qualquer tempo sem traumas maiores. Esse, entretanto, é apenas um lado da questão. Quem, tendo acompanhado o noticiário político-policial dos últimos meses, daria de bom grado mais poderes para o Parlamento?

Como já insisti em várias colunas sobre a reforma política, nosso desafio é fazer as instituições que temos funcionarem, não sonhar com um modelo perfeito que estaria ao alcance da caneta dos legisladores. Todos os sistemas têm pontos positivos e negativos e todos permitem em princípio que se alcance um nível respeitável de fazer política, desde que nos empenhemos seriamente nisso. Não tem sido, infelizmente, o caso.

É aqui que, a meu ver, nossa situação se torna mais sombria. O dilema que hoje enfrentamos em relação ao governo Lula é o corolário de nossos seguidos lapsos de indulgência ética. A contraposição das intenções de voto captadas nas pesquisas com os índices de conhecimento dos escândalos (que são relativamente elevados) indica que boa parte da população comprou o argumento do ator Paulo Betti, segundo o qual não se faz política sem pôr as mãos naquilo que os antigos romanos chamavam de "faeces". Em algum sentido, isso é mesmo verdade. Mas daí não se segue que tudo deva ser tolerado e desculpado. Muito pelo contrário, para que o grau de corrupção na política se torne o menor possível, é preciso punir cada desvio que seja detectado. Aparentemente, é o que desistimos de fazer.

O pior de tudo nessa história é que desde 2003 já não dispomos de um PT para denunciar os crimes do rei.

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