02/11/2006
Governo e mídia
Como as pesquisas haviam antecipado, Lula venceu brilhante vitória e deverá permanecer mais quatro anos à frente do Executivo. Até onde a vista alcança, vislumbro mais do mesmo: crescimento econômico medíocre e alguns novos escândalos. Os pobres terão assegurado seu "sopão", consubstanciado no Bolsa Família, e os ricos continuarão se fartando nos gordos juros pagos pelo governo a investidores. A alternativa, isto é, Alckmin, não seria, imagino, muito diferente. Talvez se trocassem dólares na cueca por mimos de alta costura, mas, no essencial, tudo continuaria mais ou menos como antes.
A melhor definição de Brasil que já ouvi é a do embaixador Rubens Ricúpero: "suave fracasso". Nada tão retumbante que provoque uma revolução, mas o suficiente para que o país jamais dê o salto que separa as nações desenvolvidas do restolho do mundo.
Feitas essas ponderações acerca do resultado da jornada eleitoral, passo a meu propósito real na coluna de hoje, que é o de queixar-me do leitor e, "en passant", comentar a relação entre imprensa e governo, que ganhou "momentum" nos últimos dias. Parte significativa das duas centenas de e-mails que recebi por conta da coluna da semana passada recriminava-me por ter afirmado que a Folha é apartidária. Não ignoro que todo texto está repleto intenções e propósitos ocultos, mas penso que as palavras ainda significam alguma coisa. E "apartidário", até prova em contrário, quer dizer apenas "alheio a partidos" ("apud" Aurélio) ou "que não segue um partido" (Houaiss). E foi só isso que eu disse. Não afirmei que a Folha, ou qualquer outro jornal, é neutra, imparcial ou objetiva. Talvez eu vá desapontar alguns de vocês, mas, para sermos rigorosos, neutralidade e objetividade não existem. Podemos apreender seu significado a partir da negação de seus antônimos, mas jamais as encontraremos em estado puro em nenhuma atividade humana.
Com efeito, por mais que nos esforcemos, é impossível escapar a todas as determinações subjetivas que nos são impostas por nossas crenças, posições políticas, hábitos e emoções. A própria escolha do assunto, a forma de escrever ou de editar um texto já implicam decisões idiossincráticas, que não podem ser tomadas como universais.
Antes de avançar, acho que convém, como já fiz em colunas antigas, examinar melhor o conceito de objetividade. Ele próprio, como veremos a seguir, tem uma história que não é lá muito "objetiva".
Até onde consegui chegar, quem pela primeira vez usou o termo "objetivo" foi o filósofo escolástico Duns Scott (1266-1308), designando mais ou menos exatamente o contrário do que significa hoje. Para Scott, "objetivo" é o nome que se dá à idéia ou à representação, em oposição a uma realidade que subsistiria por si mesma. Esse sentido prevaleceu mais ou menos até o século 17.
Como quase sempre, é a partir de Kant que o significado de "objetivo" se aproxima do atual. O filósofo de Königsberg emprega o termo para designar uma coisa que existe independentemente das idéias que tenhamos dela. Só que, vale lembrá-lo, a coisa em si mesma ("noûmenon") --a classe de objetos que comporia a "realidade objetiva"-- é uma mercadoria sem valor no universo kantiano. Muito embora possamos conceber a existência da coisa em si, só podemos abordá-la através de nossa sensibilidade e em nosso entendimento. Para efeitos práticos, vivemos numa realidade divorciada daquela da coisa em si. O que de melhor temos à nossa disposição é o fenômeno, que seria, numa aproximação muito grosseira, uma espécie de interação entre a coisa em si e o sujeito, isto é, entre a realidade objetiva e nossa forma humana, subjetiva, de percebê-la.
É aqui que os alicerces do jornalismo começam a ruir. Se até a intelecção de um objeto simples é mediada pela subjetividade, o que não dizer que não dizer dos complexos encadeamentos entre fatos e hipóteses causais que caracterizam qualquer história, de uma briga de vizinhos, à Guerra de Tróia, passando pela reeleição do presidente Lula? Os puristas podem concluir que o jornalismo é a realização diária de uma impossibilidade teórica.
De minha parte, tenho dois motivos para não abraçar essa tese com muito entusiasmo. O primeiro, mais prosaico, é que essa suposta impossibilidade teórica emite o contracheque que paga minhas contas todos os meses. O segundo, mais filosófico, é que precisamos nos precaver contra as tentações do relativismo. Em pequenas doses, ele é o melhor remédio contra os males do dogmatismo, mas se nos excedermos, corremos o risco de aniquilar a própria possibilidade de estabelecer uma hierarquia de valores. Se todos os sistemas políticos se equivalem, não há diferença entre monarquia absolutista --leia-se, ditaduras hereditárias-- e democracia. Se o que importa numa teoria é apenas sua coerência interna, precisaríamos aceitar como iguais astronomia e astrologia, medicina e xamanismo (desta vez, não vou escrever homeopatia para não passar o resto da semana respondendo a e-mails desaforados).
Voltemos, porém, ao jornalismo e tentemos resgatá-lo do oceano de indefinições em que inadvertidamente o atirávamos. Ora, mesmo reconhecendo que não existe uma verdade absoluta e admitindo que estamos limitados ao mundo fenomênico, ainda assim é forçoso aceitar que existe uma diferença entre a ficção pura e simples (Papai Noel, os "empréstimos" do Delúbio) e a enunciação de eventos verificáveis numa ordem mais ou menos coerente (um relato tão honesto quanto possível de uma história qualquer, isto é, a notícia). É nessa fresta, estreita e epistemologicamente precária, que o jornalismo tenta sobreviver.
No sentido forte, a objetividade é impossível. Não apenas não temos acesso à coisa em si como ainda temos grandes dificuldades para harmonizar os aspectos da subjetividade que variam de um indivíduo para outro. A minha noção de "honesto", por exemplo, não necessariamente bate com a do presidente Lula. Mais uma vez, o caminho é pedregoso. Se não quisermos admitir que o próprio diálogo é impossível, precisamos recorrer à frágil bóia da intersubjetividade. Ainda que jamais venhamos a nos pôr de acordo com as prioridades no Orçamento, podemos estabelecer algumas convenções que nos permitam a comunicação. Quando eu escrevo "cavalo" e "apartidarismo" estou me referindo a cavalo e apartidarismo, e não a girafa e neutralidade, por exemplo. Não é muito, mas é só essa intersubjetividade com tudo o que ela encerra de arbitrário que nos permite falar sobre o mesmo mundo.
Assim, quando proclamamos um texto jornalístico "objetivo" (com várias aspas, vá lá), só o que queremos dizer é que seu autor procurou narrar um encadeamento de fatos pretéritos e não escrever uma peça de ficção. De modo análogo, um texto opinativo --uma coluna, um comentário, um editorial-- é uma peça que já de antemão se assume como subjetiva. Não deve ser lida como uma tentativa do autor de golpear as instituições democráticas ou dominar o mundo, mas apenas como uma interpretação possível --ou nem isso-- da "realidade". Não sei se salvamos muita coisa, mas é, parece-me, o possível.
Voltando ao caso PT, cabem algumas perguntas. Como deveria agir uma mídia "neutra" no caso do mensalão? Deixar de noticiá-lo? Ora, o próprio presidente Lula reconheceu que algo de muito errado aconteceu ali, e chegou a pedir desculpas à população. O procurador-geral da República, nomeado por Lula, foi mais longe e viu no mensalão "uma quadrilha" integrada por membros da cúpula do governo e do PT que agia com o objetivo de "garantir a continuidade do projeto de poder do Partido dos Trabalhadores mediante a compra de suporte político de outros partidos". Um jornal "isento" deveria então ter mencionado o escândalo uma única vez e esquecido a questão ética? Ou, pelo contrário, deveria a cada menção do nome Lula evocar toda a lista de embrulhadas em que o presidente e seu partido se envolveram?
Parece-me que a missão fundamental da mídia apartidária ou independente (agora sem aspas) é escarafunchar nos meandros do governo --não importando sua coloração ideológica ou filiação partidária-- em busca de coisas erradas. Fatalmente as encontrará. A Folha, por exemplo, as achou aos borbotões no governo de Fernando Henrique Cardoso, ocasião em que o jornal era acusado de petista.
Uma relação "saudável" entre jornalistas e governantes será, portanto, sempre tensa. Em certos momentos, como o atual, arroubos retóricos substituem o bom senso. Até onde vejo, atitudes autoritárias de membros do governo em relação à imprensa não constituem ameaça à democracia, assim como as opiniões negativas acerca do primeiro mandato de Lula legitimamente expressas pelo "mainstream" da mídia não subvertem a vontade popular.
Dessas minhas observações não se segue, é claro, que a mídia seja infalível. Muito pelo contrário, ela erra --e muito. Eu diria até que não se esforça tanto quanto poderia em melhorar. De fato, o poder da mídia, que necessariamente opera num poço de subjetividades, de produzir e amplificar injustiças é grande e deve inspirar cautela, mas o poder de um governo não-submetido à crítica é tirânico e tende a ser muito mais danoso. Quem captou muito bem esse dilema foi Thomas Jefferson, um dos "pais fundadores" dos EUA, que afirmou: "Se me fosse dado decidir se devemos ter um governo sem jornais, ou jornais sem um governo, não hesitaria um momento em preferir a última". A assertiva é meio exagerada, mas, como frase de efeito, é boa.
Hélio Schwartsman, 41, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
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