quinta-feira, abril 20, 2006

De hoje e de outem

O maior crime: enxovalhar a história
Por Liliana Pinheiro

Diálogo ligeiro com um ex-eleitor consciente do PT, mas não filiado à sigla, mantido há cerca de um mês:Pergunta: “E aí, meu caro, muito triste com a lambança do governo petista?” Resposta: “Triste eu fiquei no ano passado. Agora estou em depressão profunda.”
Parece engraçado, e de fato é. O que não tira a ampla dimensão da observação do amigo inquirido. Faço minha própria leitura dela.

Uma parte expressiva dos cerca de 53 milhões dos eleitores que votaram em Lula evidentemente tem algum grau de desilusão com o presidente, seu partido e seu governo. Outros eleitores de outros presidentes, no passado, também nutriram sentimento semelhante. Daí para a galhofa sincera da “depressão profunda” existe um mar de histórias que precisam ser compiladas para dar conta das várias faces dessa crise política.
O PT, em si, não é nada além de um nome. O destino do partido só interessa no necessário cotejo de suas ações com as leis que nos garantem o Estado de Direito. Não é pouco. Esse confronto tem de ser feito, para a segurança de todos nós, com a responsabilização dos que desprezaram os preceitos da República.
Ocorre que o problema tem maiores implicações. É certo que petistas estão na linha de frente de crimes comprovados e outros em fase de investigação. O maior deles, porém, não vai aparecer nos autos dos processos: enxovalharam a nossa história.
Ocorreu-me essa reflexão ao rememorar os principais momentos da crise. A começar desta quinta-feira. Eis Márcio Thomaz Bastos, na condição de ministro de Lula, a reproduzir a cronologia de gravíssimo crime perpetrado com a Pasta da Justiça sob seu comando, tentando defender o indefensável, que é o governo que integra. Inevitável pensar no Thomaz Bastos da OAB dos tempos da campanha pelas diretas-já, no Thomaz Bastos do impeachment de Fernando Collor de Mello e mesmo no Thomaz Bastos criminalista, que foi eficiente na busca de punição para os assassinos de Chico Mendes.
Nesse resgate dos grandes momentos da história, outras cenas teimam em aparecer e passam a não fazer sentido diante dos fatos atuais. Quem viu o Luiz Inácio da Silva sindicalista e fundador do PT fazendo a diferença no processo de redemocratização do Brasil mal consegue compreender que coisa é essa, vestida de chefe da nação, a dizer asneiras nos palanques da reeleição, mais tarde reproduzidas pela Presidência da República como pronunciamento oficial. Na quarta-feira, Lula disse o que se segue, quando tratava do tema saúde e lembrava do acidente em que perdeu um dedo: “Certamente, se eu fosse num hospital que fosse daqueles hospitais caros, que eu pudesse pagar, certamente o médico teria recuperado uma pontinha do meu dedo, pelo menos para coçar o ouvido.”
E há mais. O José Dirceu, habitual frequentador da legendária rua Maria Antonia dos anos 60, é apontado hoje como chefe de quadrilha de assalto ao Estado. Na versão mais benigna, aparece como burguês do capital alheio, em conspirações tão clandestinas quanto secundárias, mas sempre regadas com os melhores vinhos. Isso no que deveria ser o melhor momento da democracia brasileira.
Poderia ir além. Rememorar a compostura cívica dos movimentos social e sindical, hoje tornados subservientes a um projeto que lhes dá espaço e dinheiro, além de lhes garantir impunidade, mas nenhuma dignidade. Tocar de leve no papel político que a Igreja teve e mostrar o melancólico script que encena nos dias que correm. Deitar o olhar sobre a produção da imprensa, dos artistas e intelectuais engajados no passado e daqueles remanescentes que militam no presente. Mas já basta para mostrar o tanto de história que Lula e seu PT desmoralizaram.
Não vejo o estrago apenas no campo da esquerda. Todos os políticos e cidadãos que deram sua contribuição às liberdades democráticas do país, de qualquer credo ideológico, têm o direito de lamentar. E de dizer que tristeza é sentimento superado — está lá atrás, no nascedouro da crise. A depressão profunda nos veste melhor.
RESISTÊNCIA: Fernando Gabeira (PV-RJ) e Luiza Erundina (PSB-SP)É possível tocar adiante? Todo luto termina um dia. E para toda ação, há uma reação. A fotografia ao lado é de uma manifestação contra o voto secreto na Câmara, uma prática que tem servido para acobertar acordões para livrar mensaleiros da punição. Foi tirada na quarta-feira e cortada intencionalmente — havia mais parlamentares nessa frente moralizadora; eles serão mostrados na edição de domingo do site. A idéia do corte, agora, é destacar pelo menos dois velhos e grandes personagens dessa mesma história de Lula e companhia, mas que, diferentemente do presidente e de seus amigos, têm trabalhado para honrá-la.
[liliana@primeiraleitura.com.br

Fonte:www.primeiraleitura.com.br

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