sábado, agosto 27, 2011

A fome e o infiel

15/08/2011
IGOR GIELOW

ENVIADO A ISLAMABAD
São 17h e o celular paquistanês com chip afegão apita. É uma mensagem da operadora, avisando o horário do Iftar em Cabul, para as 18h52. Iftar é o fim do jejum diário do Ramadã, o mês sagrado do islamismo, quando o fiel não pode comer, beber, fumar e fazer sexo enquanto houver luz do sol. O objetivo é demonstrar sua submissão ao poder de Deus.
Eu trabalho em países muçulmanos desde 1996, e peguei o Ramadã em algumas ocasiões. Durante a guerra no Afeganistão de 2001, caímos eu e todos os enviados especiais no meio do mês (que "anda" para trás uns 11 dias todo ano, porque o calendário islâmico é lunar). Fizemos a festa de um sujeito chamado Khalid, que não se importou em abrir o restaurante homônimo para alimentar os infiéis e encher o bolso.
Neste Ramadã, já passei por Paquistão e Afeganistão. O primeiro país tem uma elite com vários hábitos ocidentais, então não é difícil ser servido ao menos de chá com leite ou água durante entrevistas em locais fechados. Mas esqueça de beber ou comer na rua. Não rola.
Nos hotéis, você pode optar pela refeição pré-nascer do sol, chamada Sahri. O problema é que é antes das 5h, e encarar frango apimentado nessa hora é complicado. Ou então ir para o canto reservado aos infiéis nos salões de café-da-manhã, em que pães amanhecidos e chá estão à disposição nos horários regulares.
O que acaba acontecendo, até porque trabalho com um ajudante local, é que esse arremedo de café vira tudo o que você come até a noite. Ele não é exatamente o muçulmano mais estrito do mundo, então ao menos paramos para tomar água discretamente dentro do carro.
Voltando de uma área tribal um dia desses, o Iftar aconteceu no meio da estrada. Ele parou, e como estávamos com outro paquistanês no carro, ambos correram para abrir o porta-malas e fazer uma espécie de refeição com comida estocada. Sobre o capô do veículo, num acostamento.
No Afeganistão, é mais complicado. A observância dos locais é mais incisiva, e meu assistente local faz questão de começar o trabalho às 6h30, 7h, para "aproveitar que ainda não está zonzo". OK, em nome do multiculturalismo, vamos lá. Ao menos perde-se peso, conhece-se mais um aspecto da realidade local.
Mas por que diabos a operadora de celular tinha que lembrar o infiel aqui do jantar uma hora e tanto antes de ele estar disponível?
Fonte: blog pelo Mundo

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